São Bernardo – Graciliano Ramos – Questões 4 a 9
Questões sobre o romance “São Bernardo”, abordando aspectos literários e morfossintáticos.
São Bernardo – Questões 1 a 3 - 4 a 9
(FUVEST) Texto para as questões 4 a 9
“Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.
E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.
Emoções indefinÃveis me agitam – inquietação terrÃvel, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com madalena, como fazÃamos todos os dias, a esta hora. Saudade! Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.
Procuro recordar o que dizÃamos. ImpossÃvel. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.
Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.
– Casimiro!
Casimiro Lopes estava no jardim, acocorado ao pé da janela, viajando.
– Casimiro!
A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visÃveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador. Detenho-a: não quero luz.
O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge no lado de lá da mesa. digo baixinho:
– Madalena!
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos.
Também já não vejo com os olhos.
Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.
– Madalena…
A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.
rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório abre-se de manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo.
Agora seu Ribeiro está conversando com D. Glória no salão. Esqueço que eles me deixaram e que esta casa está quase deserta.
– Casimiro!
Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com o chapéu-de-couro de sertanejo, assoma de quando em quando à janela, mas ignora se a visão que me dá é atual ou remota.
Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me, bato na mesa e tenho vontade de chorar.
Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito.
Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências. Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no jardim. O gado muge no estábulo.
O salão fica longe: para irmos lá temos de atravessar um corredor comprido. apesar disso a palestra de seu Ribeiro e D. Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras.
Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha?
Se eu convencesse Madalena de que ela não tem razão… Se lhe explicasse que é necessário vivermos em paz… Não me entende. Não nos entendemos. O que vai acontecer será muito diferente do que esperamos. Absurdo.
Há um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os sapos dormem. Quanto às corujas, marciano subiu ao forro da igreja e acabou com elas a pau. E foram tapados os buracos de grilos.
Repito que tudo isso continua a azucrinar-me.
O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim à s escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me.â€
(Graciliano Ramos, São Bernardo, Rio de Janeiro: Record. 1989).
4. (FUVEST) Escolha a alternativa que explica melhor o que se está passando a personagem-narrador, Paulo Honório.
- Abandonado há pouco pela amada, encontra-se numa fase transitória de solidão.
- Preocupado em compreender o que se passou, busca recompor a imagem difusa da amada.
- Trata-se simplesmente de um sadomasoquista a escarafunchar sentimentos idos e vividos.
- Percebe-se a existência de um homem de extrema sensibilidade, esmagado por um golpe da fatalidade.
- Entre ele e a amada havia tal quantidade de problemas que a convivência se tornou impossÃvel.
5. (FUVEST) A leitura do texto mostra uma interpretação de pessoas, fatos, objetos e atos que se misturam, enquanto revelam uma escrita dificultosa na apreensão de uma realidade difusa. Dentre as respostas abaixo, qual seria a mais adequada para dar conta dessa aparência de caos?
- Visando ao refinamento da escrita, o romancista embaralha intencionalmente os acontecimentos.
- Trata-se de técnica modernista, empregada para traduzir confusão e embaralhamento.
- A dificuldade decorre da natureza do assunto e do estado psicológico do narrador.
- A interpretação é provocada pela complexidade do assunto e distanciamento dos fatos.
- Homem rude e agreste, afeito ao trabalho bruto, o narrador não é capaz de ordenar acontecimentos.
6. (FUVEST) Escolha a alternativa que retrata melhor, à luz do texto e do próprio romance, o sentido da expressão “sou forçadoâ€, presente no 2o parágrafo.
- É uma obrigação moral de reparar erro cometido no passado.
- Há uma imposição que obriga o narrador a revelar seu drama.
- Existe uma vontade de autopunir-se para livrar-se do remorso pelo mal cometido.
- O narrador tem necessidade de escrever para provar sua capacidade.
- Trata-se de um impulso interior, que leva o narrador a escrever para autoconhecer-se.
7. (FUVEST) “A figura de Casimiro Lopes aparece…â€
A partir daqui os verbos, que estavam no imperfeito do indicativo, passam para o presente. Esta mudança de tempos verbais pode ser explicada como um recurso de estilo que:
- revela um escritor vacilante no domÃnio dos tempos verbais.
- visa a confundir o leitor com a mistura indiscriminada dos tempos verbais.
- mostra que a lÃngua portuguesa tem fronteiras temporais muito fluidas.
- procura superar a idéia do tempo, mostrando a arbitrária distinção de seu uso.
- apaga as fronteiras temporais e aproxima passado e presente.
8. (FUVEST) “Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar.†Momento central do texto em questão, ajuda a compreender a personalidade de Paulo Honório, personagem-narrador do romance. Podemos dizer que se trata de:
- personalidade fraca, abatida pelas circunstâncias.
- personalidade rica de humanidade, que se perturba diante da adversidade.
- personalidade complexa, perturbada diante dos acontecimentos.
- homem forte, revoltado contra tudo e contra todos.
- homem sentimental e lÃrico, incapaz de conciliar os próprios sentimentos.
9. (FUVEST) “A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos.†A leitura atenta do texto permite dizer que:
- em virtude de sua perturbação psicológica, o narrador não consegue recordar com nitidez os acontecimentos.
- é puro jogo de palavras sem outra intenção que a de confundir os acontecimentos.
- a confusão provocada pelo estado de choque do narrador possibilita a recuperação da consciência.
- fragilizada, a personagem não consegue operar a distinção entre real e imaginário.
- tudo é possÃvel no estado de convulsão em que se encontra o mundo do narrador.
Gabarito:
4 – b
5 – c
6 – e
7 – e
8 – c
9 – a
Veja mais questões sobre São Bernardo – Questões 1 a 3 – 4 a 9
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